O frescor das verduras, o aroma do cipó d’alho e o tremor inconfundível do jambu deram o tom do Laboratório Culinário #2 do Projeto Intercâmbio Amazônia. O encontro foi uma verdadeira imersão sensorial e cultural, onde saberes da Amazônia, da Dinamarca e do Marrocos se entrelaçaram para revelar a potência da biodiversidade como patrimônio vivo e fonte de inspiração para novas práticas gastronômicas.
Durante quatro dias, de 25 a 28 de agosto, cozinheiros, agricultoras e chefs compartilharam experiências em torno da horta amazônica e de seus múltiplos usos na gastronomia contemporânea. A programação incluiu uma visita especial à Comunidade Campo Limpo, em Santo Antônio do Tauá (PA), referência na produção orgânica de hortaliças e frutas cultivadas em pequenos lotes que abastecem as feiras de Belém. Ali, além do cultivo agroecológico, destaca-se também a extração de óleos essenciais que encantaram os participantes e ampliaram o repertório criativo do laboratório.
A abertura das atividades aconteceu no auditório do Cesupa, com as boas-vindas à temática e a recepção da chefa convidada Marie-Sophie Grønlund, franco-dinamarquesa, ao lado do chef Simon Lau, coordenador do projeto e residente no Brasil há mais de uma década. Também participou do encontro o engenheiro e empreendedor Bruno Kato, proprietário da agroindústria Horta da Terra, que compartilhou sua experiência em agricultura regenerativa e no uso de tecnologias de desidratação a frio para valorizar ingredientes amazônicos, e também da PROVEG, que fez receitas com o grupo.
Atualmente radicada no Marrocos, a chef Marie-Sophie conduziu o laboratório trazendo sua experiência como professora de gastronomia pela Melting Pot Foundation no Marrocos e também os sabores intensos da cozinha marroquina. Ingredientes como limão em conserva, ras el hanout, xarope de flor de laranjeira e pétalas de rosa foram apresentados ao grupo, promovendo conexões entre culturas alimentares diversas e reforçando o poder transformador do intercâmbio gastronômico.
Encantada com a Amazônia, Marie-Sophie refletiu sobre a importância de valorizar a natureza no centro do prato, princípio da Nova Cozinha Nórdica, da qual é entusiasta. “Tudo aqui é diferente: a textura, o sabor, a paisagem. Mas o jambu me surpreendeu especialmente, por causa do tremor na boca. Fiquei pensando: o que está acontecendo?”. Além disso, ela também ficou encantada com ingredientes como o tucupi e a mandioca que revelam técnicas únicas e sustentáveis. “Quero levar essas experiências comigo. Tudo aqui inspira novas formas de cozinhar, com menos desperdício e mais conexão com o território”, disse a chefa, que esteve pela primeira vez na América do Sul.
Campo Limpo: a comunidade que transforma biodiversidade em futuro

Foi nesse mesmo espírito de troca que aconteceu a visita à comunidade Campo Limpo. Localizada em uma zona rural do município de Santo Antônio do Tauá, no Pará, uma estrada de terra leva ao território onde o som das aves se mistura ao cheiro fresco das hortas e a vida gira em torno da coletividade e do respeito à terra.
Recebidos com carimbó, poesia sobre ervas medicinais e o tradicional “banho de cheiro”, ritual aromático de boas-vindas, os participantes do projeto mergulharam na rotina da produção agroecológica local. Os participantes conheceram o trabalho da Associação de Produtores e Produtoras Rurais da Comunidade de Campo Limpo (Aprocamp) e da Cooperativa dos Produtores e Produtoras Rurais de Campo Limpo (CoopCamp), que há mais de duas décadas atuam na organização dos agricultores da região.
“Antes a gente vivia só da roça, do plantio de mandioca e da farinha para subsistência. Mas vimos que não dava mais pra viver só disso”, relembra Nazareno Neves Mateus, morador da comunidade desde a infância. Segundo ele, foi com o apoio do padre Jaime Pereira que surgiram a associação e a cooperativa, estratégias coletivas para garantir um futuro mais justo e sustentável.
A chegada da empresa Natura, anos depois, representou uma virada de chave. Em busca de comunidades para desenvolver uma cadeia produtiva sustentável da priprioca, planta aromática amazônica, a empresa encontrou em Campo Limpo uma organização estruturada, disposta a inovar. “A Natura trouxe pesquisa, capacitação e a proposta de sair da coivara e ir pro canteiro. Deu certo. Eles garantiram a compra, e a priprioca mudou a vida da comunidade”, conta Nazareno, atualmente presidente da CoopCamp.
Hoje, a associação soma mais de 100 membros, e a cooperativa reúne 97 cooperados. Além da produção de óleos essenciais, a comunidade cultiva uma diversidade de alimentos orgânicos e saudáveis — são mais de 20 variedades entre macaxeira, batata-doce, abacate, açaí, hortaliças e ervas como jambu, rúcula, espinafre e orelha-de-macaco. Produtos que, além de alimentar, contam histórias.
Sabores e memórias: quando a culinária é reencontro
“É como se cada aroma me contasse uma história, e cada ingrediente me dissesse de onde veio.” Assim Odete Macedo descreve sua vivência no Projeto Intercâmbio Amazônia. Para ela, a experiência ultrapassa a gastronomia: é um mergulho sensível nas raízes da culinária tradicional da região e, ao mesmo tempo, uma reconexão profunda com o território, a floresta e os modos de vida amazônicos.
“Desde o início foi possível sentir a conexão entre a natureza, os costumes e a comida”, relata. Para Odete, a biodiversidade da Amazônia não está apenas nas paisagens ou nas espécies da floresta, mas também no que se come — no uso de ingredientes frescos, nas ervas aromáticas, nas frutas nativas e nos temperos de quintal que carregam memórias coletivas e afetivas.
Ao reunir comunidades tradicionais, chefs internacionais e ingredientes locais, o Laboratório Culinário #2 reafirmou que cozinhar pode ser também uma forma de resistência, de escuta e de celebração. Uma cozinha onde cada prato é também um manifesto em defesa da sociobiodiversidade da Amazônia.


