O Laboratório Culinário #3 do Projeto Intercâmbio Amazônia mergulhou nas águas que alimentam a vida e a cultura da região. Da maré salgada ao doce curso dos rios, o encontro celebrou a diversidade dos ingredientes aquáticos da Amazônia e os modos de saber e fazer das comunidades que vivem deles, como a comunidade Lauro Sodré, em Curuçá, que recebeu os participantes do projeto.
Durante quatro dias, cozinheiras, pescadores, marisqueiras e chefs convidados compartilharam experiências, técnicas e histórias que evidenciam a força da relação entre as pessoas e as águas. Entre os dias 22 e 25 de setembro, cada receita preparada no Laboratório Culinário #3 foi também um gesto de reconhecimento à importância dos territórios pesqueiros e das práticas sustentáveis que garantem alimento, renda e identidade a tantas famílias amazônicas da região costeira.
A programação começou com um mergulho na diversidade de peixes da Amazônia. O peixeiro Cleuder Pimenta levou à cozinha do CESUPA espécies como filhote, dourada, piramutaba e tucunaré para ensinar técnicas de corte e uso em diferentes preparos. “Frito, na chapa, na caldeirada. Tem uma diversidade de formas de fazer. O filhote e a pescada amarela são os que saem mais, mas com todos é possível fazer uma boa receita”, contou. Ele também demonstrou o “ticado”, técnica indígena que consiste em fazer pequenos cortes na superfície do peixe, quebrando as espinhas finas, permitindo que o tempero penetre melhor e facilitando o cozimento.
Além disso, ao lado do chef Paulo Anijar, Cleuder falou sobre a valorização de espécies de peixes menos comerciais, reforçando a importância de ampliar o olhar para além dos mais conhecidos e explorados pelo mercado. A dupla destacou que a Amazônia abriga uma enorme variedade de espécies com excelente potencial gastronômico, mas que ainda são pouco consumidas. “É o caso da piaba que tem um preço em conta, o tamuatá, o aracu e um peixe de lago chamado cachorro do padre ou anujá, que é muito gostoso”, disse.

Os chefs dinamarqueses Bo Frederiksen e Marc Bach Reihs somaram-se ao grupo, contribuindo com novas perspectivas e aprendendo com os saberes tradicionais das comunidades amazônicas.
O intercâmbio entre as diferentes formas de cozinhar foi um dos pontos altos do encontro. “Houve um interesse muito grande dos chefs dinamarqueses em entender como tratamos os ingredientes aqui, e de que forma isso poderia dialogar com as técnicas que eles dominam, como fermentações e curas. Essa troca foi muito enriquecedora, porque eles reconheceram nas nossas práticas um parentesco com o que fazem, com outras intenções e significados, mas com a mesma profundidade”, destacou Felipe Gemaque, facilitador do projeto.
A valorização das práticas locais também teve papel central. “O orgulho dos nossos chefs e cozinheiros em mostrar suas técnicas e modos de preparo foi algo marcante. Ver o reconhecimento e o respeito dos chefs de fora reforça o valor do que já é feito aqui, fortalecendo nossa autoestima e o sentimento de pertencimento”, acrescentou Felipe.
O Laboratório #3 representou o amadurecimento do projeto e consolidou uma metodologia baseada na escuta e na vivência coletiva — o momento em que tudo se conectou: técnica, território e troca. O Intercâmbio Amazônia mostrou que cozinhar é também criar pontes entre mundos, reunindo cozinheiras, marisqueiras e chefs em torno de uma prática comum que transforma e aproxima culturas.
Entre experimentações e trocas, surgiram pratos que uniram técnicas contemporâneas à simplicidade dos ingredientes locais. Ostras frescas, caranguejos, camarões e peixes da região ganharam novas interpretações sem perder sua essência. Tudo era novidade para o chef dinamarquês Bo Frederiksen, que chegou a Belém pela primeira vez — e à América do Sul também — com o olhar curioso de quem descobre um novo mundo.
“Estou explodindo de ver esse paraíso. Vocês têm tudo: peixes, vegetais, frutas. Coisas que eu via no supermercado, mas nunca tão frescas como vi aqui”, disse, impressionado. Ele se surpreendeu com a variedade de sabores e a forma como ingredientes simples, como a mandioca, se transformam em tantos pratos diferentes. “Não sabia que tapioca e farinha vinham da mandioca. Do jeito que vocês fazem, é simplesmente incrível”, observou.

Nos laboratórios culinários, Bo aprendeu observando e perguntando. “Espero não ensinar ninguém a cozinhar seus próprios ingredientes, mas levar comigo um pouco da criatividade de vocês”, contou. Para ele, cozinhar é também um ato de transformação, pessoal, cultural e ambiental. “Na Dinamarca falamos muito sobre a transição verde. Precisamos comer menos carne e usar mais o que a natureza nos oferece.” Entre sabores, ideias e trocas, o chef leva da Amazônia mais que receitas: leva um novo jeito de ver o mundo, começando pelo prato.
Em uma oficina prática de experimentação culinária, o chef Simon Lau mostrou como transformar uma simples geladeira usada em um defumador a frio. Com a ajuda do serralheiro Seu Célio, ele iniciou o processo fazendo oito furos na porta do equipamento — igualmente espaçados na parte superior e inferior — para permitir a entrada de oxigênio, essencial à queima da serragem, responsável por gerar a fumaça que defuma o peixe ou a carne. Uma pequena placa metálica foi instalada para regular o fluxo de ar, controlando a intensidade da fumaça e a temperatura interna.
A serragem, feita de goiabeira, foi colocada em uma bandeja na parte inferior do defumador, com cerca de cinco centímetros de altura, enquanto outra bandeja foi posicionada acima dela para impedir que gordura ou óleo escorressem sobre o material em combustão. Segundo Simon, esse cuidado é fundamental: “A carne precisa defumar, não cozinhar”. No experimento realizado em Belém, a serragem foi trocada a cada quatro horas, totalizando 24 horas de defumação.
O lombo de pirarucu, preparado especialmente para o teste, passou o dia anterior em salga. Antes de ir para o defumador, o excesso de sal foi retirado e o peixe, bem seco — condição essencial para o processo. “A umidade cozinha o peixe, e o que queremos aqui é apenas a fumaça, lenta e constante”, explicou. Assim, acendeu-se a serragem, e a fumaça começou a circular suavemente pela geladeira, envolvendo o pirarucu até adquirir o sabor e a coloração característicos da defumação artesanal.
A programação do Laboratório #3 incluiu ainda degustações, atividades em grupo e demonstrações de diferentes métodos de preparo de peixes — do ceviche à defumação, do pochê à fritura — sempre com ênfase na valorização dos ingredientes regionais e na precisão das técnicas. Entre as tarefas propostas, os participantes prepararam uma “emulsão de ostra”, maionese feita com ostras cruas no lugar das gemas, além de guarnições frias e pratos com espécies locais, estimulando o uso criativo de produtos da costa amazônica. O encontro também explorou métodos tradicionais e contemporâneos de conservação e cocção, reforçando o papel da culinária como ferramenta de inovação e preservação cultural na Amazônia.
Maré de trabalho e esperança na Vila Lauro Sodré
Na Vila Lauro Sodré, em Curuçá, o mangue é mais do que paisagem: é modo de vida. A comunidade está localizada dentro da Reserva Extrativista (Resex) Mãe Grande de Curuçá, criada em 2002 para proteger os ecossistemas costeiros e garantir o uso sustentável dos recursos pelas populações tradicionais. A pouco mais de 130 quilômetros de Belém, o território tornou-se referência na produção de ostras nativas da espécie Crassostrea gasar, cultivadas de forma artesanal e sustentável.

A presidente da Associação dos Aquicultores da Vila Lauro
Sodré (Aquavila), Taciara Freitas da Silva Galvão, relembra as origens do projeto com carinho. “Os antigos tiravam a concha da ostra para fazer cal e misturar na massa de construção, como uma espécie de liga. Não era comum comermos a ostra, só usava-se a casca. Um dia começaram a experimentar, fritar, e viram que era boa”, conta.
A atividade ganhou força no início dos anos 2000, quando o biólogo cubano Leonardo Chagas, pesquisador no Brasil, identificou a Lauro Sodré como o local ideal para o cultivo de ostras — um ponto de cabeceira de rio com condições naturais perfeitas. “O projeto começou por volta de 2000, 2001. No início havia muita gente envolvida, mas como o retorno financeiro demorava, alguns desistiram. Só ficaram os que realmente acreditaram”, lembra Taciara. Entre esses pioneiros estão José e Dona Elza, sócios fundadores da associação, ao lado de Denis Galvão, já falecido. “Eles não desistiram. Foram anos de luta até a gente se manter e ver o projeto ser reconhecido.”
Hoje, a Aquavila reúne dez associados — cinco mulheres e cinco homens — e envolve cerca de 50 pessoas de forma indireta, entre familiares e colaboradores. O cultivo começa com coletores feitos de garrafas PET, onde as sementes de ostra se fixam antes de passar por diferentes etapas de crescimento até chegar ao tamanho ideal para consumo. “A gente acompanha desde a sementezinha até a ostra adulta. Quando chega a hora de abrir e comer, é muito gratificante”, explica Taciara. O ciclo completo pode durar de seis meses a um ano, dependendo da qualidade da água e do ritmo das marés. Os picos de venda acontecem em datas festivas, como Semana Santa, Carnaval e fim de ano, quando a demanda aumenta e o trabalho se intensifica.
Apesar dos desafios — como a falta de infraestrutura e as barreiras logísticas para o transporte e emissão de notas fiscais —, Taciara enxerga na ostreicultura um caminho sólido de futuro para Lauro Sodré. “Sustento minha casa, meu esposo e minha família com ostra. É um sentimento de gratidão a Deus poder trabalhar com essa paisagem, com o mangue”, afirma. Para ela, viver entre rios e marés é um privilégio e também uma forma de resistência: “Quem tem contato com a natureza vive melhor. Aqui a gente cuida, preserva e ensina pros filhos e netos que é possível viver da floresta sem destruir.”
A chegada do Projeto Intercâmbio Amazônia, em 2025, marcou um novo capítulo nessa história. “Foi o primeiro projeto que trouxe tanta gente pra ver de perto o que a gente faz, ainda mais nesse período da COP. É bom ver nossa realidade sendo reconhecida”, celebra Taciara. Para ela, cada visita e cada troca reforçam o propósito da comunidade: provar que a Amazônia costeira pode inspirar o mundo com práticas que unem conservação, trabalho digno e sabor.

Entre os que dividem esse orgulho está José Galvão, também integrante da Aquavila. Ele fala com emoção sobre o ofício que transformou sua vida e a de muitas famílias da região. “Hoje eu me sinto muito orgulhoso de trabalhar nesse cultivo de ostra. Crio meus filhos mostrando o valor da natureza, a importância de preservar esse nosso cultivo, que é o que vai garantir o futuro das próximas gerações”, diz. Para ele, o trabalho representa mais do que renda — é um legado. “Quero que Deus me dê saúde para continuar nessa atividade e deixar esse exemplo para os que estão chegando, mostrando que é possível viver bem cuidando do que é nosso.”
Nascido e criado na comunidade, José conhece o rio de ponta a ponta e fala com ternura sobre o território: “Trabalho com o cultivo há 23 anos e é uma maravilha. Essa natureza, esse mangue, esse ar saboroso da Amazônia, tudo isso faz parte da nossa vida aqui no litoral de Curuçá.” Antes de se dedicar às ostras, ajudava o pai na pesca e na agricultura, mas a curiosidade o levou a participar das primeiras experiências de cultivo. “Quando começaram as pesquisas para implantar o cultivo de ostra e formar uma associação, eu entrei. Fiquei curioso para entender como funcionava o processo. Fiz cursos pelo Sebrae e aprendi com os biólogos que vieram nos ensinar. Hoje sou técnico em cultivo de ostra aqui no Pará. A gente trabalha desde a semente até a engorda, na fase comercial. Me sinto feliz e realizado, com saúde e forças para continuar nesse trabalho que tanto amo.”
O mar, o mangue e o esforço coletivo seguem guiando os passos da comunidade — uma verdadeira maré de trabalho e esperança que move a Vila Lauro Sodré.


