Chefs dinamarqueses e participantes do projeto em aula no Cesupa. Foto: Lorena Fadul/Amana Mídia
Tucupi, farinha baguda, beiju xica… nomes e sabores comuns para os paraenses, mas ainda desconhecidos de paladares internacionais. Esses produtos têm como base a mandioca, que foi o tema do Laboratório Culinário #1 do Projeto Intercâmbio Amazônia, reunindo chefs locais e internacionais em uma intensa troca de saberes. Ó laboratório, em formato de workshop, abordou desde o uso ancestral do tipiti até as inovações contemporâneas voltadas ao aproveitamento integral desse ingrediente central na culinária e na cultura amazônica.
Realizada de 28 a 31 de julho, a programação contou com oficinas práticas e imersão em território tradicional, para além das atividades de experimentação criativa com ingredientes da sociobiodiversidade regional. Durante quatro dias, os participantes do projeto trabalharam ao lado dos chefs convidados Kenzo Hirose (Bolívia), Bertil Tøttenborg (Dinamarca) e Simon Lau (Dinamarca), compartilhando técnicas, repertórios e modos de fazer culinários.
O Projeto Intercâmbio Amazônia é realizado em parceria com a ong dinamarquesa Melting Pot Foundation, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), o Instituto Paulo Martins e a Embaixada da Dinamarca no Brasil, com financiamento da Cooperação de Desenvolvimento Internacional da Dinamarca (Danida).
Voltado à valorização da gastronomia regional como vetor de desenvolvimento sustentável, com foco na formação prática de profissionais locais, a ação promove trocas de conhecimento entre chefs amazônicos e chefs internacionais. As atividades foram conduzidas nas instalações do CESUPA, em Belém.
Comunidade Quilombola Espírito Santo do Itá
Como parte da programação do Laboratório Culinário, os participantes do Projeto Intercâmbio Amazônia realizaram uma visita de campo à Comunidade Quilombola Espírito Santo do Itá, em Santa Izabel do Pará. A atividade promoveu uma jornada de escuta e troca com agricultores e agricultoras locais, incluindo a visita à casa de farinha, ao Museu da Mandioca e o compartilhamento de um almoço regional com produtos da própria comunidade, preparado pelas mulheres – consideradas as guardiãs dos saberes da mandioca.
Durante a visita, os moradores apresentaram diferentes formas de uso do tubérculo, destacando etapas da cadeia produtiva que vão desde o plantio até a produção artesanal de derivados destinados ao consumo e à comercialização. A experiência reforçou o protagonismo das comunidades no cuidado com os saberes alimentares e na valorização da sociobiodiversidade amazônica.

A imersão territorial é um dos pilares metodológicos do Laboratório e busca fortalecer os vínculos entre profissionais da gastronomia e os saberes tradicionais que sustentam a cadeia da sociobiodiversidade na Amazônia. Um dos símbolos mais fortes dessa conexão é o Museu da Mandioca, espaço criado e mantido pela própria comunidade como forma de preservar e valorizar esse patrimônio cultural.
O sommelier dinamarquês Bertil Tøttenborg, que vive há dez anos na América do Sul e já morou na Bolívia, Brasil e atualmente vive na Argentina, acumula sete anos de experiência com a mandioca — ou yuca, como é chamada na Bolívia —, ingrediente essencial para várias comunidades. Ele ressalta sua versatilidade, que vai além da versão frita, chegando a molhos como o tucupi e o tucupi preto, além de usos em drinks. No Pará, conheceu novos modos de preparo na comunidade quilombola de Espírito Santo do Itá, o que ampliou seu olhar sobre o produto. “Tenho conhecimento da mandioca, mas não da maneira como vi aqui. Foi uma experiência fantástica, que me permitiu enxergar novas possibilidades, especialmente no universo das bebidas. Fora daqui, pouca gente conhece a realidade amazônica, e por isso iniciativas como o Intercâmbio Amazônia são tão importantes para apresentar essa região preciosa ao mundo”, afirma.
Para Antônio de Pádua, pedagogo, pesquisador e diretor do museu, a iniciativa é um reconhecimento à sabedoria ancestral dos povos indígenas, base do conhecimento agroalimentar da região. “Somos herdeiros dessa tradição que representa uma das maiores contribuições para a humanidade”, afirma. Segundo ele, o museu é uma homenagem aos antepassados que transmitiram as técnicas de uso da mandioca, alimento considerado central na identidade amazônica. “A mandioca carrega valores, memórias afetivas e significados profundos. Tudo isso está presente no museu. Esperamos que as futuras gerações se sintam parte desse legado e contribuam para preservá-lo, sendo protagonistas de sua própria história. O museu foi feito com muito amor e carinho para os amazônidas e para todos os brasileiros”, conclui.
A chef Bruna Peua, uma das profissionais de gastronomia de Belém selecionadas para participar dos laboratórios, também ressalta o impacto da experiência. Para ela, o intercâmbio vai além da criação de pratos e permite uma reflexão mais ampla sobre os processos produtivos da culinária local. “Nós já temos os produtos, mas agora começamos a pensar em como utilizá-los de forma mais integrada, considerando toda a cadeia produtiva e também o conhecimento acadêmico”, explica. Segundo Bruna, um dos pontos mais marcantes foi o contato direto com técnicas tradicionais mantidas pelas comunidades. “O projeto não é apenas sobre quem vem de fora, mas também sobre fortalecer o orgulho e o sentimento de pertencimento de quem está aqui”, afirma.
Troca de saberes
Ao final do Laboratório, os participantes compartilharam os resultados da experiência e ressaltaram o potencial transformador do projeto. Kelly Castro, uma das integrantes do Intercâmbio Amazônia, destacou a força da tradição ao preparar um prato típico da região. “Queríamos colocar tudo, mas entendemos que, às vezes, o menos é mais”, afirmou. Segundo ela, a simplicidade e autenticidade dos sabores encantaram os chefs convidados e reafirmaram o valor da cultura local. Kelly também se disse emocionada ao ver os mesmos ingredientes sendo reinventados em outras abordagens gastronômicas. “Foi muito bonito ver como eles apresentaram novas formas de usar os mesmos produtos, com outros sabores e jeitos de trabalhar. Isso inspira a gente a seguir aprendendo e valorizando os saberes da nossa terra”, diz.
Para o chef boliviano Kenzo Hirose, do restaurante Gustu, integrante da seleta lista do Latin America’s 50 Best Restaurants, participar do projeto em Belém é uma chance de conhecer a Amazônia brasileira e lembrar que a floresta não tem fronteiras — atravessa Bolívia, Peru, Colômbia, Equador e Brasil. Ele defende que todo cozinheiro deveria vivenciar o trabalho das comunidades que cultivam produtos nativos para compreender as raízes da gastronomia e valorizar esses ingredientes. “É entender nossas origens, apresentar os produtos com o respeito que merecem e pensar numa gastronomia sustentável, conectada ao meio ambiente e à preservação de saberes e sabores ancestrais da América Latina”, afirma.
Se por um lado o Laboratório resgata e valoriza saberes tradicionais, representados pelo trabalho de comunidades que mantêm vivas técnicas ancestrais, por outro também abre espaço para a inovação como aliada da gastronomia amazônica. Um exemplo é a Manioca, empresa fundada por Joanna Martins — que também dirige o Instituto Paulo Martins —, reconhecida por transformar ingredientes da floresta em produtos de alto padrão, unindo processos produtivos modernos e tecnologia ao respeito às origens culturais.
Para Joanna, o impacto do Laboratório vai muito além da formação técnica. “Estamos falando também de pertencimento e identidade. Ao promover esse espaço de trocas, o Laboratório contribui para ampliar horizontes e consolidar a gastronomia amazônica como referência mundial”, afirma.

Próximos Laboratórios
O Projeto Intercâmbio Amazônia seguirá com novas etapas em agosto e setembro, aprofundando o diálogo entre chefs locais e internacionais a partir dos ingredientes e práticas culinárias amazônicas. O Laboratório Culinário #2 terá como tema Ervas, Especiarias e Frutas Amazônica, com a presença da chef dinamarquesa Marie-Sophie Grønlund. A programação inclui visita à Comunidade de Orgânicos Campo Limpo, em Santo Antônio do Tauá, além de momentos de escuta e troca no CESUPA, onde serão apresentadas as habilidades e conhecimentos dos participantes.
Em setembro, o Laboratório Culinário #3 abordará o universo das ostras, caranguejo e pescado, com a participação do chef dinamarquês Bo Frederiksen. As atividades incluem imersão em território produtor, troca de experiências entre cozinheiros e laboratório prático no CESUPA, reforçando a conexão entre os saberes tradicionais e a gastronomia internacional.
